Um dos temas mais polêmicos dos últimos anos nos debates sobre a educação no Brasil está em pauta no Congresso Nacional: o homeschooling, ensino domiciliar de crianças e adolescentes promovido pelos próprios pais ou por profissionais por eles contratados, sem que haja a delegação para instituições oficiais de ensino.
O que diz o Projeto de Lei aprovado na Câmara dos Deputados
O texto do Projeto de Lei n. 3.179-B/2022[1] aprovado na Câmara dos Deputados contém os seguintes pontos e ainda será votado no Senado Federal:
· Passa a constar na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que a educação escolar “se desenvolve predominantemente em instituições próprias, admitida, na educação básica, a educação domiciliar”, devendo a educação escolar e domiciliar “vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social”.
· Será assegurado o direito de livre escolha, devendo os pais ou responsáveis legais formalizarem a opção pela educação domiciliar perante instituição de ensino onde estará matriculado o estudante, devendo os pais comprovarem: (i) escolaridade de nível superior ou em educação profissional tecnológica de pelo menos um deles; e (ii) certidões criminais.
· É obrigatório os pais realizarem matrícula anual do estudante em instituição de ensino credenciada pelo órgão competente do sistema de ensino;
· Os pais ou responsáveis deverão manter registro periódico das atividades pedagógicas e enviar relatórios trimestrais à instituição de ensino onde estiver matriculado o estudante;
· O conteúdo deverá ser de acordo com a Base Nacional Comum Curricular, com a possibilidade de incluir conteúdos adicionais pertinentes;
· As instituições de ensino manterão cadastro dos estudantes em educação domiciliar nelas matriculados, devendo-se informá-lo, ano a ano, ao órgão competente; além disso, um tutor docente da instituição deverá acompanhar o desenvolvimento do estudante, inclusive mediante encontros semestrais com os pais ou preceptores, devendo ser promovidos encontros semestrais das famílias optantes pela educação domiciliar, com o fim de intercâmbio de experiências;
· As instituições de ensino deverão avaliar: (i) semestralmente, os estudantes com deficiência ou transtorno global de desenvolvimento; (ii) anualmente, para fins de certificação do ensino domiciliar, os estudantes na educação pré-escolar, com base nos relatórios trimestrais enviados pelos pais; e (iii) anualmente, os estudantes dos ensinos fundamental e médio, com base nos conteúdos curriculares da Base Nacional Comum Curricular, podendo avançarem nos cursos e nas séries; se a avaliação for insatisfatória, será oferecida avaliação de recuperação, no mesmo ano;
· A família poderá perder o direito de optar pelo ensino domiciliar caso: (i) incorra um dos pais em qualquer crime contra dignidade sexual, bem como crimes tratados no ECA, Lei Maria da Penha, Lei de Crimes Hediondos e Lei Antidrogas; (ii) o estudante do pré-escolar reprovar dois anos consecutivos, e os estudantes do fundamental e médio reprovar dois anos consecutivos ou em três anos não consecutivos, nas avaliações anuais; e (iii) o estudante com deficiência ou transtorno global de desenvolvimento evidencie, por duas vezes consecutivas ou três vezes não consecutivas, insuficiência de progresso, na avaliação semestral;
· Será necessário realizar atividade pedagógicas que promovam a formação integral do estudante, que contemplem seu desenvolvimento intelectual, emocional, físico, social e cultural;
· Será assegurada isonomia de direitos entre estudantes em educação escolar e aqueles em domiciliar; além disso, fica assegurada aos estudantes em educação domiciliar participação em concursos, competições, avaliações nacionais, inclusive quando se tiver a comprovação de matrícula escolar como requisito para a participação;
· Fica descaracterizado o crime de abandono intelectual (art. 246 do Código Penal) no caso dos pais que optarem pelo ensino domiciliar.
O entendimento do STF na matéria
O pano de fundo da discussão é o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n. 888.815, julgado em 12 de setembro de 2018. (STF. Plenário. RE 888815/RS, rel. orig. Min. Roberto Barroso, red. p/ o acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 12/9/2018 – repercussão geral).
Em resumo, em 2018 a Suprema Corte considerou constitucional o homeschooling porque que o texto constitucional, embora faça referência apenas ao ensino oficial, não veda de forma absoluta o ensino domiciliar.
Todavia, entendeu ser necessário regulamentar o tema por meio de lei federal, não havendo se falar em “direito público subjetivo” do aluno ou de sua família ao homeschooling. Justamente por esse aspecto da decisão que, desde 2018, além de iniciativas na Câmara dos Deputados, diversos legisladores estaduais e municipais apresentaram projetos para regular a matéria nos respectivos entes federados – a despeito da questionável constitucionalidade dos projetos apresentados perante as câmaras de vereadores e assembleias, tendo em vista o teor do Art. 22, XXIV, da Constituição da República/88.
O voto do Min. Alexandre de Moraes explicou existirem quatro formas de ensino domiciliar: a desescolarização radical; desescolarização moderada; homeschooling puro; e o chamado homeschooling utilitarista ou “ensino domiciliar por conveniência circunstancial”.
Somente a última modalidade seria constitucional, tendo em vista que as três primeiras não permitem a presença do Estado, o que contraria o comando presente no Art. 205 da CR/88, que prevê um dever solidário da família, Estado e sociedade na educação. Eis, em suma, uma descrição de cada uma das modalidades, segundo a Corte:
· Unschooling radical (desescolarização radical): parte-se da premissa de que somente aos pais é consagrado o direito de educar os filhos, sendo vedada ao Estado a instituição de escolas e currículos; tal modalidade se oporia, inclusive, à existência de uma lei de diretrizes e bases educacionais ou de qualquer fiscalização do Poder Público;
· Unschooling moderado (desescolarização moderada): por essa modalidade, a institucionalização deve ser evitada, mas não se proíbe ao Poder Público oferecer educação escolar; mas somente aos pais caberia escolher pela educação domiciliar ou institucionalizada, não podendo o Estado interferir no conteúdo ou método;
· Homeschooling puro: a educação seria tarefa primordial da família e só subsidiariamente do Estado, cujas escolas seriam utilizadas de maneira alternativa pelo pais que se considerarem incapazes de educar seus filhos;
· Homeschooling utilitarista: não é vedada a opção dos pais pelo ensino domiciliar, desde que siga os mesmos conteúdos básicos do ensino escolar público e privado, que permita a supervisão, fiscalização e avaliações periódicas, desde que cumpra a obrigatoriedade, de 4 a 17 anos, e que respeite dever solidário da Família, Estado e Sociedade em educar as crianças, adolescentes e jovens. (Dá-se o nome utilitarista pois, “sem se opor radicalmente à ideia de institucionalização e à supervisão estatal, apresenta-se como alternativa útil para prover os fins educacionais de modo tão ou mais eficiente que a escola”).
Portanto, seria inconstitucional uma lei que não possibilitasse a interação entre Família, Estado e Sociedade no desenvolvimento da educação, sendo também indispensável atender às finalidades e objetos do ensino, a saber: evitar a evasão escolar e garantir a socialização do indivíduo, por meio de ampla convivência familiar e comunitária.
O julgamento também abordou à época (ainda que em ditos de passagem) sobre a não incidência do crime de “abandono intelectual”, do art. 246 do Código Penal; segundo o Min. Luís Roberto Barroso, “o tipo [penal] não se aplica, porque os pais de crianças que estão em ensino domiciliar estão provendo instrução aos seus filhos, apenas por um método diferente do convencional ou do que adotado pela maioria das pessoas. E relembrando aqui que a tese do abandono intelectual é mais infundada ainda se nós nos dermos conta de que a educação domiciliar dá muito mais trabalho e impõe muito mais ônus aos pais e responsáveis do que a educação em instituição formal de ensino” (STF. Plenário. RE 888815/RS, Voto do Min. Luís Roberto Barroso, p. 7).
Notas conclusivas
O tema do homeschooling é controvertido e, smj, e representa um “desacordo moral razoável”, dado que não há consenso e há um embate entre posições racionalmente defensáveis.
Por um lado, há motivos para repensar o modelo atual tendo em vista que o tema acompanha números de índices nacionais e internacionais pouco satisfatórios: mesmo com as obrigações impostas pelo governo, com o atual modelo, o analfabetismo atinge cerca de 6,8% da população acima de 15 anos, sendo a média mundial de apenas 2,6%[2]. Somado a isso, pessoas com cosmovisões de verve libertária ou religiosa advogam pela criação dos filhos com uma mínima intervenção estatal, ao que fazem coro alguns casos “limítrofes” como crianças com altas habilidades.
Por outro, são igualmente legítimas as preocupações de especialistas acerca do papel do ambiente escolar na socialização dos indivíduos e na colocação destes em contato com pessoas de contextos sociais diferentes, o que também prejudica a formação do senso crítico; também merece atenção o possível isolamento de crianças e adolescentes que sofrem com abusos dentro do próprio ambiente familiar.
Pode-se dizer que o STF optou, quando chamado a decidir sobre a questão, por deixar o tema para o Legislativo.
Acerca desta postura “minimalista” da corte, segundo bem pontuou o Min. Gilmar Mendes o ensino domiciliar convida a refletir sobre o sistema vigente e abre margem para avançar na participação da família nesse processo formativo, promovendo um experimentalismo democrático, algo que deve ser feito não por uma decisão judicial, mas por intermédio da mobilização política e pela atuação dos diversos agentes democráticos.
[1] Trata-se da Redação Final do respectivo projeto e lei, aprovado na Câmara dos Deputados em 19/05/2022 e encaminhado ao Senado na mesma data. Link: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0hgnvnvfbbofe18x47ec5qx1r911617851.node0?codteor=2174834&filename=Tramitacao-PL+3179/2012 [2] Educação brasileira está em último lugar em ranking de competitividade. CNN Brasil, 17/06/2021. Link: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/educacao-brasileira-esta-em-ultimo-lugar-em-ranking-de-competitividade/
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